O que é Netnografia – Teoria, Método, Aplicação ao Varejo, Estratégias e Cases
Autor: Valéria Brandini, PhD.
Publicado no livro Marketing Digital 2nd Edição de Martha Gabriel
A Antropologia do Consumo, ou Antropologia Aplicada, vem se tornando, nas últimas décadas, uma metodologia de investigação cada vez mais utilizada e valorizada pelo mercado de bens de consumo e pelas organizações. Seu diferencial como ciência aplicada ao mercado consiste, em grande parte, no uso de uma metodologia que define o processo antropológico de apreensão da realidade e interpretação dos dados coletados em campo: a etnografia.
Neste artigo, apesar da utilização de termos e conceitos científicos buscarei representar de forma acessível o tema, priorizando o acesso do leitor ao campo do conhecimento da antropologia e da etnografia numa linguagem mais fluida e não focada na leitura de “pares” da área acadêmica. Assim como em minhas aulas e junto aos clientes do mercado de bens de consumo, darei prioridade ao entendimento leigo desta ciência (antropologia) e da aplicabilidade de seu método (a etnografia) no mundo empresarial e no universo digital.
Antropologia: O estudo das diferenças que formam a identidade de um grupo
Para entender a estrutura da etnografia, se faz necessário compreender os aspectos essenciais da antropologia, ciência que deu origem ao método. A antropologia social, ciência do campo das humanidades, estuda os seres humanos sob o ponto de vista sociocultural, diferentemente da antropologia biológica. Este estudo busca apreender as características que definem uma sociedade e a diferenciam de outra, compondo, assim, sua identidade. Por isso a antropologia é chamada de “o estudo do Outro”, este outro, compreende a diferença de um grupo para outro, que marca as características identitárias de grupos e sociedades. Por exemplo: quando o antropólogo Roberto da Matta investigou as características identitárias da diferença entre a vida pública e a vida provada no Brasil, sua pesquisa deu origem à obra “A Casa e a Rua, espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil”, que mostra os diferenciais que definem a forma como os brasileiros entendem e vivenciam estas duas esferas, sendo a rua o espaço do perigo, dos malandros e heróis, sem valores morais definidos e a casa como espaço de segurança e controle, onde os papéis sociais dos membros da família são bem delineados e obedecem a outra lógica.
No século XIX, a antropologia surge como uma ciência que se ocupa de investigar as populações que não pertencem à Civilização Ocidental, como os Civilizações Africanas e aquelas do Novo Mundo e povos da Oceania, como os aborígenes de Papua Nova Guiné. Mas como cumprir o desafio de compreender uma sociedade cujas formas de conceber o mundo, a realidade, a vivência cotidiana e os princípios norteadores de tomada de decisão, se as estruturas sociais, os valores e os comportamentos são completamente diferentes daquelas do pesquisador? Faz-se necessário conceber uma metodologia capaz de extrair a perspectiva do Outro, não segundo a visão de mundo e valores do pesquisador (o que incorreria num desvio, numa interpretação equivocada), mas conforme a percepção de realidade deste Outro, sobre a sua cultura, sobre os “porquês” de comportamentos e formas de ser, conforme as razões internas do grupo.
A investigação das características culturais de um grupo, de um povo, de uma sociedade, é, portanto, uma prática extremamente complexa, pois é como se aprender uma poesia numa língua a qual não se conhece – entendemos as palavras, percebemos a realidade sonora destas, mas não sabemos seu significado, pois não compreendemos o que estes termos referenciam “nesta cultura”, diferente daquela do pesquisador.
A cultura, sob o ponto de vista da antropologia cultural, é essa rede de significados que o Homem construiu e o mantém preso a ela (GEERTZ, 1989), opera como uma “matrix” (em alusão ao filme de Wachowski de 1999) que nos confere o entendimento da realidade. Ela é tão determinante que também chamada de “segunda natureza”, pois seus conteúdos estão tão interiorizados na existência humana, delineando a forma de se perceber o mundo e vivenciar a realidade, e sua influência no comportamento dos indivíduos, dos traços culturais que definem um grupo é tão inconsciente – mas, contudo, tão “naturalizada” em sua forma de ser – que possui o mesmo poder de moldar consciências e atitudes, que a natureza possui de definir funções orgânicas das formas vivas.
Entender a cultura de um grupo, ou sociedade, na investigação antropológica, é mapear essa rede invisível de significados que norteia valores, define visão de mundo, constitui a ética e por fim estruturas padrões de comportamentos sociais. Enquanto “rede invisível”, “matrix” que cria os códigos que orientam nossas ações, mas da qual não temos consciência, a cultura não é algo passível de ser apreendido e decodificado por meio de técnicas de pesquisa usuais. Isso porque a sutileza com que os moldes culturais orientam nosso comportamento estão no nível da inconsciência. Alguém que nasce numa colônia italiana, como meus avós, não tem noção de que fala alto – pois a altura do tom da voz é algo naturalizado em seu comportamento. Se numa entrevista se perguntasse porque minha avó falava alto, ela diria que não falava alto, que falava de forma normal, como todo mundo que conhece. Este “falar alto” compreendia um traço da cultura – essa diferença que constitui um elemento que marca a identidade de um grupo.
Etnografia – Descrição Densa
A etnografia como processo de pesquisa se diferencia de outras técnicas pelo caráter de proximidade do objeto de estudo, em contraposição a técnicas que visam o distanciamento do objeto como forma de isenção por parte do pesquisador. Se você “olhar de longe”, não consegue entender o que significa “andar nos sapatos do Outro”, quer dizer, o distanciamento, necessário em processos de pesquisa como na sociologia e na psicologia, é adequado quando se compreende qual é a “gramática de uma cultura” o que querem dizer suas crenças, princípios, valores, comportamentos. Mas se não conhecemos os significados dos comportamentos e princípios de escolha de um grupo, não será possível mapear e interpretar o que querem dizer esses dados.
Diferentemente de uma descrição objetiva do que está à frente do pesquisador, o etnógrafo desenvolve o que Geertz (1988) chamou de “descrição densa”, isto é, uma detalhamento, pormenorizado de tudo o que se percebe com o olhar, mas também com os sentidos. A cultura é uma rede de códigos estabelecidos. Imagine que três crianças que não se conhecem começam a brincar num parquinho. Duas delas são brasileiras e uma delas é um aborígene da nova Guiné. Uma das crianças brasileiras esconde um brinquedo da outra criança brasileira e dá uma piscadela para a criança aborígene, numa atitude de conchavo, para este não dizer nada à criança que procura seu brinquedo. Mas como a criança aborígene não conhece o “código” da piscadela, ela acredita que a criança que escondeu o brinquedo está com algum problema no olho e não entende o que ela está “dizendo”. Numa descrição simples, ou objetiva, relatamos os comportamentos tal qual são efetuados. Já numa descrição etnográfica, uma descrição densa, mapeamos os códigos de tudo aquilo que está para alem dos dados objetivos, interpretando os significados para cada uma das crianças presentes no relato e o que cada uma entende, conforme seus códigos culturais, sobre o que ocorreu na experiência do parquinho.
A etnografia permite, na pesquisa qualitativa e em especial, na pesquisa de mercado, que seja possível ao investigador apreender princípios motivadores de comportamento que não são apreensíveis por meio de questionários, grupos focais, observação direta. Não porque as pessoas mintam, mas porque estas não tem consciência do porque e de que maneira realizam suas ações. Na etnografia, o pesquisador vivencia a realidade do objeto de estudo “junto a ele”, in loco, no espaço de vivência do indivíduo, ou grupo. Assim sendo, consegue extrair padrões de comportamento, princípios de tomada de decisão e códigos de valores que não seriam evidenciados por meio de outras técnicas de pesquisa.
Exemplo de um estudo de antropologia aplicada, foi uma etnografia realizada para entender porque pacientes que faziam quimioterapia nos olhos preferiam a quimioterapia aplicada diretamente no olho e não aquela tomada por via intravenosa, como é feito com outros tipos de câncer. Por uma “lógica racional”, a quimioterapia intravenosa seria menos refração do que uma injeção aplicada diretamente no olho do paciente. Em pesquisas qualitativas realizadas não foi Possível determinar o porquê os pacientes preferiam a quimioterapia aplicada diretamente nos olhos – eles mesmos não sabiam o porque – ou diziam repostas racionalizadas que não refletiam a razão da escolha, mas uma tentativa de criar uma lógica para aquilo que não conseguiam responder, algo comum em pesquisas e que cria viés e resultados equivocados. Mas durante uma etnografia em que o antropólogo permaneceu junto aos pacientes durante seu tratamento, o investigador conseguiu desvendar a questão: quando os pacientes ficavam na sala de quimioterapia, numa cadeira especial tomando a medicação intravenosa, sentiam-se solitários e angustiados, numa situação de fragilidade. Já quando o médico aplicada a injeção com a medicação no olho do paciente, ele sentia-se amparado, cuidado, pois durante o procedimento o médico conversava com ele e o fazia sentir-se acolhido – algo que não era consciente para os pacientes, mas observável numa descrição densa.
Etnografia no Campo Digital
A antropologia sempre se apropriou das novas tecnologias de seu momento sócio-histórico para usá-las como ferramentas metodológicas. A antropologia visual trata de gerar registros documentais que os dados possam ser trabalhados a posteriori, como no caso das imagens geradas pelo antropólogo Claude Levi Strauss, de indígenas brasileiros nos anos 1930. Não é, portanto, difícil entender como na era digital os devices como computadores, tablets e smartphones sejam também instrumentos de pesquisa.
Fora a utilização instrumental da tecnologia, o próprio universo digital se torna um campo de pesquisa a partir do momento que representa um espaço de socialização por meio do qual as interações e representações de uma cultura se manifestam. Assim como no universo “presencial”, na rede social digital temos a formação de grupos que se formam em torno de interesses em comum e que acabam por compor, de forma orgânica, comunidades com formas de sociabilidade específicas, com padrões comunicacionais que revelam uma forma de linguagem, que compartilham valores e visões de mundo que promovem a união do grupo em torno de algo, assim como processos de conluio e divergências, tal qual uma comunidade observada por um etnógrafo e investigada por meio da descrição densa.
Embora existam diferentes linhas de pensamento Antropologia Social, como a estruturalista, funcionalista e a funcionalista, em minhas pesquisas utilizo a linha de pensamento da Antropologia Simbólica de Clifford Geertz para pesquisas no campo digital por ser esta a linha que trabalha a cultura como uma rede de significados e toma a antropologia como uma ciência interpretativa desses códigos. Como o que temos na internet são códigos representados em formas de linguagem – escrita, visual, sonora – uma antropologia interpretativa, com um viés de semiótica da cultura (análise dos significados das manifestações culturais), serve melhor ao propósito da investigação etnográfica digital.
Na obra “Netnografia, Realizando Pesquisa Etnográfica Online” (KOZINETS, 2014), o autor define a “cibercultura”, ou cultura digital, como um espaço de sociabilidade entre pessoas onde as interações entre estas constituem um meio de transação cultural, isto é, existem trocas de informações, mas informações estas que operam dentro de sistemas de significado. Ao etnografar uma comunidade de praticantes de skate, haverá termos, nomenclaturas, padrões de escrita e formas como seus integrantes interagem, enxergam o mundo e se manifestam sobre ele, que representam os elementos dessa cultura – a cultura do skate – assim como ela é representada na vivência offline.
A etnografia busca o reconhecimento de padrões de cultura, os padrões de sociabilidade, de linguagem, de comportamento que representam um grupo cultural, uma sociedade. Na etnografia digital, esse busca é operada tratando as interações entre internautas – seus posts, comentários, manifestações de toda ordem, desde o uso de palavras, imagens, memes, canções, vídeos – quer dizer, todos os elementos que servem como manifestação de uma cultura, são apreendidos por meio de uma imersão do etnógrafo no universo de trocas simbólicas dos membros de um grupo, assim como na etnografia presencial, essa “proximidade” será realizada por meio de uma observação participante, uma descrição densa, uma interpretação dos códigos expressos na comunicação dos internautas conforme os significados de sua cultura.
Aplicação Prática da Etnografia Digital
Coleta de Dados – Imersão no Universo Digital do Outro
No caso da etnografia desenvolvida na internet, o campo de pesquisa torna-se todo o espaço de interações entre pessoas, manifestações particulares por meio de posts, comentários, memes e reações de outros internautas a estas manifestações. Como em toda a pesquisa qualitativa, em especial, na pesquisa etnográfica, a delimitação do tema, da questão de pesquisa, da amostragem (perfil de público e cultura digital a ser investigada), são elementos essenciais que vão definir o sucesso ou enviezamento do resultado final da pesquisa.
Kozinets (2014) atenta para as diferenças entre comunidade e cultura online. Uma comunidade, no caso das redes sociais, se circunscreve como um grupo delimitado dentro de uma rede, com um tema de apreciação em comum com seus membros. Já uma cultura online, se manifesta transversalmente pela internet perpassando redes sociais, Fóruns, comentários em jornais, revistas, por meio de blogs e toda a sorte de interação onde os communitas desta cultura expressam conteúdos relativos à temática essencial que os une. Por exemplo: numa etnografia digital sobre o consumo de produtos veganos, temos uma comunidade no Facebook que leva este nome, a qual certamente será analisada num processo de imersão cultural por parte do etnógrafo, para apreender os códigos comunicacionais, valores, princípios norteadores de escolha, como numa etnografia convencional. Mas a cultura vegana se manifesta para além de uma comunidade, por meio dos participantes desta cultura que realizam interações por meio de posts em seus perfis, comentários em comunidades, perfis de outras pessoas, fan pages de marcas e influenciadores, que por meio dessas interações deixam no mundo digital os códigos de sua cultura a serem apreendidos, analisados e interpretados pelo etnógrafo conforme o universo de valores da cultura vegana como um todo.
O mapeamento dos códigos realizados na etnografia digital não é diferente daquele feito no mundo presencial por meio dos “diários de campo” típicos dos antropólogos. Não basta apreender os códigos, tirar prints de tela e somar interações. Numa etnografia digital o método de análise é decisivo. Se não houver análise antropológica, é um mero monitoramento de dados, uma observação de comunidades com resultado analítico do senso comum, sem base metodológica de análise de dados que configure uma etnografia. Tanto o planejamento de coleta de dados, quanto a análise final, precisa estar embasada na descrição densa e na interpretação dos dados segundo a perspectiva do relativismo cultural.
Relativismo Cultural como Base na Interpretação Etnográfica.
Por mais que a etnografia digital parece, a um leitor leigo, cientificista demais e teórica demais, eu adianto, como professora de metodologia de pesquisa que – pesquisa é processo – qualquer tipo de pesquisa só terá validade se forem observados rigorosamente seus processos metodológicos. Qualquer não observância dos filtros aplicados na escolha dos perfis a serem analisados, na construção do objeto de estudo que vai definir que tipos de grupos, comunidades, perfis e interações se investigar, ou no processo final de análise, irá corromper o resultado da pesquisa tornando-a nula, enviezada, inútil para sua função, que no caso da etnografia digital aplicada, é servir de base para a criação de estratégias de marcas, posicionamento e estruturação de novos produtos, entre outros.
O relativismo cultural é uma metodologia de análise contraria ao etnocentrismo. No etnocentrismo (etno = grupo), o indivíduo acredita que sua forma de ver o mundo, seus valores e seu padrão de comportamento é o correto e o do Outro é errado. Existe um “estranhamento” em relação à cultura e comportamento do Outro, pois esse indivíduo naturalizou os valores e padrões que aprendeu como “a realidade”. Por exemplo: na sociedade ocidental, a cor preta pode ser interpretada como um sinal de luto, em países do Mediterrâneo, a viúva usa a cor preta para expressar seu pesar por pelo menos um ano, em especial, entre sociedades que mantém valores tradicionalistas. Já em países do Oriente, como China e Japão, o luto é representado pela cor branca, para evocar o silêncio, a pureza, a paz para a pessoa que morreu.
Não existe certo, nem errado, apenas o que chamamos de “alteridade cultural” a diferença entre culturas. Mas no etnocentrismo, a pessoa só consegue enxergar o seu padrão e os seus valores como certos, existe um julgamento do que é certo e do que é errado, entendendo que a pessoa está certa e o Outro está errado, ou é estranho, esquisito, o que resulta, na maior parte das vezes, em preconceito. O contrário do etnocentrismo, na análise antropológica da pesquisa etnográfica, é o relativismo cultural. No relativismo cultural, o pesquisador realiza o ato de observar a cultura do outro com isenção, sem julgamentos, permitindo-se entender qual é a lógica inerente a essa cultura que orienta seus padrões de comportamento e forma de conceber a realidade.
O relativismo cultural é uma prática difícil de ser realizada, pois exige que o pesquisador “se trabalhe internamente”, desenvolva o “olhar etnográfico”, um olhar isento de julgamentos que buscará apreender qual a lógica de funcionamento daquele grupo, de suas escolhas, de seus comportamentos. Conforme Françoise Laplantine, “O etnógrafo deve ser capaz de viver no seu íntimo a tendência principal da cultura que está estudando” (LAPLANTINE, 2004: 22), e isso só será Possível, se o etnógrafo abrir mão, durante o processo de coleta de dados, do código de valores de sua própria cultura que o levará a enxergar a cultura do Outro com julgamento. O ser humano não consegue aprender aquilo que já sabe. Se o pesquisador não abrir mão da visão particular de mundo de sua cultura, não conseguirá enxergar de fato e aprender sobre a cultura que está sendo investigada. Seu emprego suscita experiência, para que o pesquisador consiga “colocar em suspensão momentânea” seus códigos de valores para apreender os do Outro.
Análise de Dados com Base Científica
Nos meus quinze anos de pesquisa antropológica aplicada ao mercado, a experiência prática e os resultados obtidos junto a clientes mostraram que trazer o rigor metodológico da antropologia para a aplicação na área de consumo e organizações – adaptando essa metodologia ao timing e necessidades do mercado – permite um diferencial em relação a métodos de pesquisa qualitativa convencionais. Esse rigor diz respeito não apenas à técnica de coleta de dados – mapeamento etnográfico – mas à análise dos dados embasada em artigos científicos.
Vivendo a era das fake news e de uma sobreabundância de informações completamente descontextualizadas nos meios digitais, o processo de análise etnográfica necessita ser subsidiado por uma base sólida que permita ao pesquisador ter uma referência com legitimidade científica para interpretar os dados, caso contrario, o “achismo” e a auto-referência irão gerar viés na pesquisa, principalmente pela característica de proximidade entre pesquisador e objeto de estudo. Faz-se necessário, no momento da análise de dados, que o pesquisador desenvolva um distanciamento metodológico, contrario à fase inicial de coleta de dados. Esse distanciamento torna-se possível quando estruturamos a análise dos dados coletados no universo digital em artigos científicos que tratam do tema, num processo de pesquisa semelhante àquele que desenvolvemos no mundo científico. Nesse momento também é necessário ao pesquisador ter a experiência na prática antropológica, para conseguir identificar quais são as obras científicas adequadas para servirem ao escopo de análise dos dados, quais representam “o estado da arte” naquele tema, ou área de pesquisa.
O Uso da Inteligência Artificial na Etnografia Digital
Assim como foi falado no início deste artigo, a antropologia e a prática etnográfica sempre lançaram mão das novas tecnologias existem em cada época, desde o século XIX, como instrumentos de pesquisa de campo. Na era digital, não será diferente. A Inteligência Artificial, operada por meio das ferramentas de analytics, utilizam cada vez mais a análise semântica permitindo que os sentidos das comunicações mapeadas nos processos de interação dos internautas sejam mapeados com maior assertividade, para além do “positivo, negativo e neutro” das primeiras ferramentas de monitoramento de dados digitais.
Paralelamente à imersão etnográfica em culturas digitais, os dados coletados pelo mapeamento de inteligência artificial nos permitem ter uma noção de abrangência do fenômeno estudado (tema), com dados quantitativos e uma representação dos códigos comunicacionais (termos usados no processo de interação de internautas) mais utilizados, elementos que contribuem tanto para o desenho inicial da pesquisa de imersão (seleção dos recortes do tema a serem investigados, grupos e comunidades online que o etnógrafo imergirá) quanto um recorte temporal das interações que nos permite aferir a intensidade de manifestação dos internautas na rede acerca do tema estudado.
Case de Pesquisa – Cabelos Cacheados e Consumo Ideológico
Como tutora de Inteligência Artificial de uma startup de analytics, utilizo a etnografia digital e a análise antropológica como estratégias de pesquisa para os clientes da empresa, em geral, empresas de bens de consumo, partidos e candidatos políticos e organizações.
O case que irei apresentar foi uma pesquisa realizada sobre o uso de produtos cosméticos na área de cabelos, inicialmente realizada para uma multinacional, com foco na percepção do cliente sobre os produtos, associada a uma análise do princípio de escolha a partir de buscas sobre cosméticos na internet. Quando percebemos uma relação cruzada entre o aumento de menções a cabelos cacheados e discursos ligados a feminismo e movimento negro, resolvemos desenvolver um estudo particular, separado daquele feito para a multinacional de cosméticos.
Neste estudo a ferramenta de analytics mapeou, numa rodada inicial sobre o tema “cabelos cacheados” (um dos padrões de cabelos investigado, assim como cabelos lisos, entre outros) uma relação de termos e interações crescente, numa aferição entre 2015 a 2018, entre cabelos cacheados, empoderamento feminino, feminismo e feminismo negro. A diferença da ferramenta utilizada, de inteligência artificial, para as ferramentas de analytics convencionais (monitoramento de redes, por exemplo), é que sem a interferência humana da imputação de dados, ela consegue, por meio de uma análise semântica sensível, capaz de estabelecer relações entre termos, “aprender com isso” (machine learning) e mapear significados mais complexos em processos de linguagem. Assim, a ferramenta de inteligência artificial permite fazer um recorte de amostragem, de direcionamento de investigação em comunidades e de processos de interação, “cirúrgico” para que a pesquisa etnográfica seja cada vez mais assertiva.
Com a ferramenta de analytics, pudemos obter “sinais fracos”, ou seja, sinais indicativos de padrões de comportamento e interações online que nos permitiram traçar hipóteses a serem investigadas como possibilidades de eventos futuros. Percebemos que desde o ano de 2015, havia uma predominância de conteúdos semânticos que relacionavam cabelos cacheados a posicionamentos ideológicos, em especial, partindo da região nordeste, a Bahia, mais precisamente. Menções que associavam o feminismo negro à valorização de cabelos cacheados, começaram a ser investigadas, de forma a localizar os espaços de sociabilidade digital de maior manifestação desses termos. Conseguimos chegar a comunidades, formadores de opinião, Fóruns, entre outros espaços de interação que mais irradiavam menções e arregimentavam entusiastas.
A ferramenta de inteligência artificial me serviu como uma referência para a construção de uma hipótese a ser verificada por meio da imersão etnográfica. Essa hipótese, subsidiada por dados quantitativos e referências semânticas, referia-se ao aumento da auto-estima por parte das mulheres (em especial, as jovens) que “assumiam” os cabelos cacheados – o termo assumir, neste caso, era usado nas interações mapeadas para definir o comportamento de deixar de usar processos temporários, ou definitivos de alisamento capilar e/ou usar o cabelo de forma a ressaltar os cachos, ou uso do estilo afro Black Power – e o fato dessa auto-estima estar relacionada à atribuição de um sentido de valorização das características físicas naturais, inclusive étnicas, das mulheres, de forma que estas passavam a sentir que seu cabelo cacheado natural constitui uma referência de beleza apoiada em valores feministas de assunção do corpo natural como belo e como espaço de manifestação do poder feminino na sociedade contemporânea.
A partir dos dados capturados pela IA, selecionei as coletividades online para realizar a imersão etnográfica e comecei a pesquisa de campo digital. Inicialmente, a “entreé”, ou início da investigação etnográfica digital de que nos fala Kozinets (2014), foi feita com uma observação não-interativa, com vistas a mapear os padrões de interação, formas de socialização, termos utilizados que referenciam os princípios dos membros dentro da coletividade, de forma a apreender os valores e visão de mundo dos internautas, por meio da descrição densa, tal qual a etnografia presencial. Na fase de observação não-participante, obtemos dados que permitem traçar novas hipóteses sobre a questão de pesquisa que serão verificadas na fase de observação participante, quando o etnógrafo, após tornar-se um iniciado na comunidade, passa a interagir com outros membros grupo, buscando um aprofundamento no reconhecimento dos padrões de comportamento e valores do grupo.
Após a fase de coleta de dados, que contou, inicialmente com o a) mapeamento de dados pela ferramenta de Inteligência Artificial, b) análise dos dados para formulação de hipóteses, c) imersão nas coletividades digitais e observação não-participante, d) descrição densa, e) formulação de novas hipóteses a serem verificadas nas interações com membros das coletividades – inicia-se a fase de análise e interpretação dos dados com base em teorias e artigos científicos que abordam os temas de referencia do estudo, mapeados inicialmente por analytics – estética feminina e relações de poder no Brasil, estética e feminismo, estética e movimento negro, feminismo negro.
Pudemos constatar a relação entre a valorização do cabelo cacheado como um padrão estético que passa a ser ressignificado a partir da emergência de movimentos de emancipação feminina de padrões eurocêntricos nos estados do Nordeste e nas regiões periféricas de metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, com um movimento de “bubble up”, ou seja, uma força centrípeta da periferia para o centro, gerando assim uma tendência estética pautada em valores ideológicos.
Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo apresentar a etnografia digital como uma metodologia de pesquisa bastante adequada às necessidades e demandas do mercado de bens de consumo contemporâneo. Se um dos grandes problemas – e custos – da pesquisa de mercado diz respeito ao recrutamento de pessoas com perfis adequados à amostragem de pesquisa, no caso da investigação realizada no meio digital, esses problemas são minimizados, pois o campo digital não necessita de deslocamento (o acesso do pesquisador é remoto, só necessita de um device e acesso à internet), a investigação é menos invasiva do que no campo presencial e a busca por perfis compatíveis com filtro de pesquisa é bastante facilitada.
Não busco neste artigo expor a etnografia digital como uma metodologia que irá substituir outras e nem colocar o campo digital como aquele que substituirá o campo presencial. Cada pesquisa deve obedecer a uma ecolha metodológica diretamente ligada ao seu problema de pesquisa – este irá definir qual a melhor estratégia metodológica a ser adotada. Mas por sua facilidade de acesso, de campo de observação participante, possibilidade de mapeamento de dados por registro direto destes (como prints de tela) e diminuição de custos financeiros, a etnografia digital se apresenta como uma excelente alternativa metodológica para pesquisa de mercado e de opinião pública.
Seu maior “entrave”, contudo, é a banalização e distorção do método por parte de pessoas que utilizam a etnografia de forma errada, que realizam monitoramento de redes sociais digitais e nomeiam isso como netnografia, que realizam uma mera observação e catalogação de dados, sem o processo adequado de pesquisa e sem a análise antropológica do resultado e chamam isso pelo termo netnografia. Isso faz com que pessoas, clientes, empresas tenham uma perspectiva equivocada do que é a etnografia digital, ou netnografia e com isso a metodologia perde a possibilidade de ser apresentada e compreendida em sua forma e resultados reais. Mas isso é algo recorrente, em especial no marketing e na comunicação mercadológica, assim como a própria etnografia presencial é também confundida com observação de compra de clientes em supermercados e visitas a cada de consumidores que mostram ao “pesquisador” armários cuidadosamente preparados para a pesquisa, como se fossem o resultados das compras e consumo cotidiano.
Fato é que a etnografia digital, assim como outros procedimentos metodológicos da antropologia, como mapeamento de relatos de histórias de vida, vem sendo cada vez mais descobertos e utilizados pelo grande mercado como alternativa metodológica para conseguir apreender realidades e chegar a resultados que metodologias de pesquisa convencionais não conseguem.
Associado a isso, a utilização de novas ferramentas tecnológicas que ampliam a abrangência, profundidade e assertividade do método, fazem parte da história da antropologia como um todo e vem contribuindo para que as pesquisas voltadas para o mercado consigam decodificar valores, princípios de tomada de decisão e mapear tendências socioculturais de comportamentos de consumo em seu início, ou que virão ainda no futuro.
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