Por que “transformar a cultura organizacional” é uma incoerência? (e o que fazer se preciso gerar essa mudança na minha empresa?)

O termo cultura é uma daquelas palavras que mais gera polifonia em qualquer discurso. Dependendo do verbo ao qual está associada, é pior ainda. “Ter” cultura pode ser visto como ser erudito, como também pode significar que você tem elementos de um grupo (cultural) impregnados. Quando entra no “ser”… vixe! Danou-se. Mas, confusões semânticas à parte, o calo aqui está na atribuição do termo cultura ao universo dos valores, práticas e vivências do brand equity de uma empresa. O termo “cultural organizacional”, o que aqui nos interessa, é mais vago e vasto do que se imagina, mas é nesse universo que pessoas de uma empresa vivem, se relacionam e operam sem saber.

O conceito de Stephen Paul Robbins, base para o entendimento sobre o tema no campo empresarial, tem um elemento chave que destoa do conceito que a ciência dedicada ao estudo de cultura – a antropologia – entende sobre ela. O “conjunto de hábitos e crenças estabelecido por meio de normas, valores, atitudes e expectativas compartilhadas por todos os membros da organização” (1979) de Robbins é claro e preciso. Mas, todo antropólogo sabe que uma cultura não é “estabelecida”, ela não é produzida, ela não é criada, ela só passa a existir como o resultado de processos sociais que operam organicamente na relação de um grupo com o meio e com o código de valores que orienta visão de mundo e, por conseguinte, atitude/comportamentos desse grupo nesse meio. Certo, mas os termos valores e atitudes do conceito de Robbins estão aí, Valéria. Sim, estão. Regras, também, meu caro. Mas, ainda assim, existe incoerência.

O que muda aqui, é que Robbins fala sobre cultura ou mudança cultural, sem falar em SOCIEDADE, ou mudança social. A lógica dele está mais na “casinha” da liderança e de processos internos e menos no campo da formação e transformação de uma cultura. E para a ciência da cultura (no conceito da antropologia simbólica, pois também tem a antropologia estrutural, de Levi Strauss) , a cultura é, conforme Geertz (1979) “essa rede invisível de significados que o homem teceu e que o prende, orientando suas ações”. Rede – Invisível – Significados – Ações. E essa rede invisível chamada de cultura se instaura por uma impregnação lenta e contínua de códigos sociais estabelecidos a partir de relações políticas entre pessoas e grupos. Assim se formou a cultura dos povos ameríndios, a cultura do seu time de futebol (essa que é tão forte que parece uma segunda natureza – termo que nós antropólogos usamos para definir a influência da cultura na sociedade) e a cultura da Toyota do Brasil (a qual tive o imenso prazer de etnografar, mapear e decodificar há mais de 10 anos).

Aqui percebemos que no campo empresarial o alvo está certo, mas a mira está as vezes um pouco desfocada – e é essa mira sem foco que faz com que a transformação cultural de muitas empresas patine e ande de lado. Se chama um consultor externo que “ganha um rim” pela hora/homem, e se implanta um modelo de “cultura” que opera de fora para dentro – imagine chegar alguém dizendo como o torcedor da Mancha Verde, ou da Gaviões da Fiel tem que olhar para o seu time e se comportar nos jogos dali para frente, baseado em qualquer modelo que serviu para o Real Madrid ou para a seleção da Alemanha?

Vale isso, Arnaldo?

Bem, primeiro, uma mudança cultural não é algo que se consiga fazer arbitrariamente. É como querer mudar a direção do vento, da corrente marítima, do fogo. É querer mudar uma força sobre a qual o sapiens não tem ingerência, pois é a “sombra” que resulta de relações políticas sobre um grupo social e que gera mudanças que vão, gradualmente, criando a “rede invisível de significados” que orienta perspectivas e comportamentos.

Tá, Valéria. Mas diferentemente de uma sociedade civil, uma empresa tem foco em resultados comerciais, quer vender produtos, ou serviços, não se ocupa de criar uma sociedade assim, ou assado, seu objetivo é outro.

Correto. Mas independentemente do objetivo, se é criar uma sociedade mais igualitária, ou uma empresa com maiores margens de lucro vendendo paçoquinha, o “processo” de transformação cultural por mudança social é o mesmo.

E o que muda em relação ao conceito de Robbins? A diferença é que uma mudança cultural só pode ocorrer a partir de transformações nas relações de poder numa empresa e de mudanças sociais conseguintes a ela. Mas o que relações de poder – política (não partidária) – tem a ver com isso? Tudo! As relações entre pessoas são sempre relações políticas. As tomadas de decisão operam sempre em dimensões políticas, as mudanças só são possíveis a partir de relações políticas, pois são as políticas sociais definidas (pelo Estado, pelo time de futebol, ou pela empresa) que determinam as regras que vão definir o jogo social e a forma como processos serão operacionalizados e o sistema como um todo vai rodar, produzir, se relacionar.

Ok. Entendi o conceito, mas na prática, qual a diferença?

A diferença está em tirar aquele quadro de missão e valores embolorado da parede e entender a organização como um sistema de relações de poder onde o foco, a ferramenta e o resultado são PESSOAS. Onde toda a grana gasta em compra de softwares de agile e de jornadas de herói com palestrante que também cobra um rim a hora, não vai ter retorno pois o que deve trabalhar é o SOCIAL de dentro para fora, pois o cultural é ingerenciável (existe esse termo?), ele é a sombra da mudança social e essa mudança tem que sair do canvas de propósitos (essa palavra…) heroicos e entrar no papo reto daquilo que as pessoas querem ser e viver ali.

A liderança (o líder), nesse processo, é o chefe político que vai orientar essa transformação social que, gradualmente, por meio de ações pontuais de políticas sociais e processuais, vai impactar em mudanças culturais efetivas. E, assim como no desenvolvimento de culturas em diferentes grupos, dos povos do Pacífico Ocidental estudados por Malinowski, até o baile funk estudado por Hermano Vianna, o VALOR de uma cultura, aquilo que a move e determina o que ela é, vem de dentro para fora, vem de valores invisíveis a olho nú (que quando foram mapeados etnograficamente) mostraram que a rede invisível de significados foi sendo construída por meio de artefatos que se formaram a partir da relação entre pessoas, a partir de códigos simbólicos que teceram essa rede, de determinantes do ambiente e de crenças latentes – e foi essa conjunção de elementos produziu essa dimensão abstrata de valor chamada cultura que impregnou pessoas e criou uma civilização (ou um rolê funk, ou a torcida do Corinthians).

Por vezes, os heróis do canvas não estão na mitologia, ou nas lideranças empresariais do ano da Forbes. Estão na forma de ver o mundo, de ser e viver de pessoas invisíveis numa sociedade e numa organização, mas que são aquelas que foram impactadas por políticas da empresa, que as vivenciaram em suas relações pessoais e de trabalho na organização e que teceram os nós dessa teia que formou o tecido vivo de empresa, que a faz respirar o novo que vem de fora, incorporar ao seu organismo e se reciclar, para sobreviver à mudança e vencer no ecossistema empresarial – e esse tecido que se chama cultura. Para isso, a taxonomia cultural. Got it? 😉

Entendi. Então pra chegar na transformação cultural tem antes duas casinhas pra andar se quiser ganhar no jogo? Sim, cara pálida! É isso.

No próximo post vamos jogar no tabuleiro da mudança social na organização. Traga seus dados.

Foto: mulheres islandesas parando o país para exigir condições de igualdade no trabalho em 1975. Islândia, o país com a cultura mais feminista do mundo.

#culturaorganizacional #transformaçãocultural #mudançaorganizacional #cultura #antropologiacultural #antropologiaorganizacional #liderança #culturaempresarial #sociedade #sociologia #finlândia #womenstrike #finland #feminism #feminist #valeriabrandiniphd #toyota #toyotadobrasil #tdbank #tdb

valeria

Deixar uma Mensagem de Resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.